De
cada 100 pessoas que experimentam crack, algo em torno de 20 tornam-se
dependentes. É um número assustador, preocupante, claro, mas é importante notar
uma coisa: é a minoria. O crack é mais viciante que a maconha (9%), menos do
que o tabaco (32%, a taxa mais alta entre as drogas).
Mas a grande questão é a
seguinte: o que faz com que algumas pessoas que experimentam as drogas fiquem
dependentes e outras não?
Segundo
o médico húngaro-canadense Gabor Maté, a resposta é simples: as pessoas que se
afundam nas drogas são as mais frágeis. Gabor é um dos especialistas mais
respeitados do mundo em dependência e esteve no Brasil esta semana. Sua palestra, no Congresso Internacional sobre Drogas que
aconteceu no fim de semana em Brasília, foi imensamente esclarecedora.
“Em
20 anos trabalhando com usuários em Vancouver, eu nunca conheci nenhum
dependente que não tivesse sofrido algum tipo de abuso na infância – abuso
sexual ou algum trauma emocional muito grave”, ele disse. Ou seja: dependentes
de drogas são sempre pessoas com fragilidades emocionais causadas por traumas
na infância.
O
momento mais polêmico da palestra foi quando ele afirmou algo que ninguém
esperava ouvir: “drogas não causam dependência”. Como assim não causam? E
aquele bando de gente esfarrapada no centro da cidade? Ele explica: “a
dependência não reside na droga – ela reside na alma”. É que quem sofreu abusos
severos na infância acaba tendo sua química cerebral alterada e cresce com um
eterno vazio na alma. Frequentemente esse vazio acaba sendo preenchido com
alguma dependência. “Pode ser uma droga, ou qualquer outro comportamento que
traga algum alívio, ainda que temporário: compras, sexo, jogo, comida,
religião, internet.”
A
cura para a dependência, portanto, não é a destruição da droga: é o
preenchimento do vazio na alma. Gabor, aliás, sabe muito bem do que está
falando. Ele próprio, afinal, sente esse vazio. Ele nasceu em Budapeste em
1944, durante a ocupação nazista, com a mãe deprimida, o pai preso num campo de
trabalhos forçados, os avós assassinados pelos alemães. Quando cresceu, para
aliviar a dor emocional que sentia, desenvolveu uma dependência: “virei um
comprador compulsivo”.
O
sofrimento que Gabor sente está óbvio em seu rosto: nos seus traços trágicos,
nos olhos tristes. Mas ele encontrou paz: seu trabalho ajudando dependentes lhe
trouxe sentido na vida e esse sentido preencheu, ao menos em parte, o vazio.
Em
resumo: crianças que foram muito mal-tratadas acabam virando adultos
“viciados”. E aí o que nossa sociedade faz? Trata mal essas pessoas. “Nós
punimos as mesmas crianças que falhamos em proteger”, diz Gabor.
Na
semana passada, uma pesquisa do Datafolha mostrou
que o maior medo dos paulistanos é o de perder seus filhos para as drogas. É um
medo compreensível e do qual eu, como um quase pai (minha primeira filha nasce
no mês que vem), compartilho. Mas esse medo não pode justificar políticas
repressivas e violentas, que impõem tratamento religioso forçado e dá poder
ilimitado à polícia. Isso só vai aumentar o estresse na vida de gente que já é
frágil – e é sabido que estresse piora a dependência.
Hoje
já está claro que o único jeito de lidar com gente que tem um vazio na alma é
com compaixão. O que essas pessoas precisam não é de cadeia nem de conversão
forçada nem de projetos de lei medievais como o que está tramitando agora no
Congresso, com apoio do governo federal – é de compreensão e de ajuda para
encontrar algo que ajude a dar sentido para as suas vidas.
Em
2000, uma pesquisa em Portugal revelou que as drogas eram o maior problema do
país. No ano seguinte, o governo português teve a coragem de montar um novo
sistema, muito mais barato para o contribuinte, comandado pelo ministério da
saúde, sem internações compulsórias nem violência policial.
Ano retrasado, a pesquisa foi repetida
e drogas nem apareceram na lista dos dez maiores problemas portugueses. O
problema havia sido resolvido. Com compaixão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário